A velha empregada de minha família era negra. Chico, o neta dela - como é costume acontecer quando não temos irmãos - era o meu companheiro constante de brincadeiras e folguedos.
Em tudo quanto fazíamos, a parte de Chico era sempre a mais pesada, secundária e passiva. Ele tinha que dar e, nunca, que receber.
Um dia corri para casa, à saída da escola porque Chico e eu tínhamos projetado construir uma vala que fosse do poço à lavanderia.
Sem darmos por isso, cada um de nós assumiu logo o seu papel - como de costume.
Chico era o "condenado" a trabalhos forçados, suando e repetindo esforços. E eu o implacável guarda, com uma vara na mão!
A maneira como eu estava maltratando aquele menino negro era quase digna de um adulto imbuído de preconceitos de cor.
Foi quando a nossa preta velha chamou-nos:
-Crianças, venham pôs a minha panela no fogão!
Corremos para a cozinha. A panela estava no chão e nós a agarramos com ambas as mãos. Mas com um grito a largamos, perplexos de que ela nos tivesse mandado pegar em uma coisa que - era evidente que sabia - estava extremamente quente.
Em seguida, em graves e brandas palavras, tão nítida e simples que até hoje as posso escutar, partindo do fundo do tempo, disse-nos assim:
-Ora! Vocês dois se queimaram. Que coisa mais engraçada! A cor da pele de vocês é tão diferente, mas a dor que estão sentindo é igual para ambos, não é verdade?
Concordamos que sim. E nunca mais pude me esquecer desse episódio que, sem dúvida alguma, fez de mim uma pessoa diferente.
do livro E, para o resto da vida... (Wallace Leal V. Rodrigues)